Zygmunt Bauman e a corrente da ordem político-jurídica brasileira

Zygmunt Bauman, um dos mais renomados teóricos do século 21, destacou-se com a criação da metáfora da liquidez, ocasião em que introduziu um conceito que simboliza uma nova forma de relação do indivíduo com seus iguais e que divide a vida pós-moderna em duas categorias: o mundo real e o virtual. O autor polonês aprofunda ainda que as manifestações, relações e sentimentos humanos são líquidos porque não têm uma forma definida. É como se algumas práticas individuais e verdades fossem inconstantes ou temporárias e, portanto, dotadas de fluidez como um líquido. E essas particularidades estão inseridas em nossas instituições políticas e jurídicas do país, sobretudo nos últimos anos. Assim, o profeta da pós-modernidade põe no centro das discussões a tecnologização que, aparentemente, proporciona felicidade e poder às pessoas, as quais constroem a sua identidade cultural e se realizam virtualmente, no emaranhado das redes sociais. E, nessa era da informação, Bauman pondera que a lentidão representa o atraso, a invisibilidade equivale à morte ou à exclusão social [1] e que os indivíduos vivem em plebiscito diário à base do on ou off [2]. E os recursos da informática impactaram bastante na política e na Justiça brasileira, tanto que muitas candidaturas e eleições de políticos nasceram e se mantêm pelo meio eletrônico, com direito à “lacração” nas redes para se manter em alta, prática que rende votos. No Judiciário, estamos assistindo ao avanço do juiz-robô e de decisões em massa, boa parte das quais no modelo do copia e cola, que não examinam, efetivamente, as teses levantadas pelas partes processuais. Além disso, o mal líquido [3] está presente na vida contemporânea porque se apresenta de várias formas, como se vivêssemos, constantemente, sob campo minado, que reproduz medo e incertezas. Para Hannah Arendt, está havendo uma irritabilidade universal [4] entre os povos por conta da incompreensão e da insensatez humana, fato que dissemina o mal na humanidade. E a ideia da filósofa alemã, remete-nos à teoria hobbesiana da guerra generalizada de todos contra todos, descrita em Leviatã [5], situação não distante da realidade brasileira, mesmo guardando as diferenças com os costumes do século 17, de maneira que, hodiernamente, assiste-se ao recrudescimento da violência, do ódio e da intolerância, bem como de práticas de selvagerias, como agressões e homicídios por razões banais ou desumanas. Novo hábito político do século 21: a tecnopolítica No final do século 19, Machado de Assis usou a sua obra Quincas Borba, numa conversa entre os personagens Doutor Camacho e Rubião, para tecer o conceito de política, levando em conta a sua complexidade, idolatria, inconfiabilidade e volubilidade, ocasião em ponderou o seguinte: “política pode ser comparado à paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo; não falta nada, nem o discípulo que nega, nem o discípulo que vende. Coroa de espinhos, bofetadas, madeiro, e afinal morre-se na cruz das idéias, pregado pelos cravos da inveja, da calúnia e da ingratidão…” [6] Enquanto Max Weber evidenciou a estreita relação entre política e Estado, defendendo que “por política, compreendemos aqui apenas a direção ou a influência exercida sobre a direção de uma associação política, portanto, hoje, de um Estado” [7]. Outro tema central na visão weberiana diz respeito ao critério econômico que distingue o viver “da política” e “para a política”, que no primeiro caso se refere a indivíduos que desenvolvem atividades e são remunerados no âmbito da política; enquanto na segunda categoria, as pessoas não necessitam de remuneração para atuar na política e, sim, são movidas pelo valor ou interesse pessoal, surgindo daí o homem político [8]. E a proposta debatida é explicada a partir do axioma aristotélico de que o homem é um ser político por natureza [9] e, vivendo em sociedade, é responsável pelos avanços, ou retrocessos, dos povos, mesmo considerando a pluralidade de culturas existentes no planeta e seus conceitos do que seja prosperidade, especialmente na evolução eletrônica. Luís Roberto Barroso adentra na matéria observando o impacto da revolução tecnológica sobre a vida contemporânea, especialmente o poderio desempenhado pelas redes sociais, que modifica os hábitos pessoais e sociais [10]. Afilado com o pensamento baumaniano, Barroso enceta ainda que as plataformas tecnológicas, como facebook, instagram, youtube, whatsapp, twitter e tiktok, têm um peso importante no processo político-eleitoral, reconhecendo a influência do universo digital nas eleições dos Estados Unidos da América, Índia, Hungria e Brasil. Nesse panorama, surgiu uma nova fórmula de fazer política nos tempos contemporâneos: a tecnopolítica, que dá votos, elege e mantém uma legião de eleitores digitais fidedignos, que seguem virtualmente os eleitos e refletem as suas atividades e ideias. Por igual, observa-se que a direita brasileira utiliza os recursos de informática com mais frequência e eficiência do que a ala esquerdista e contam ainda com o incentivo da monetização de postagens virtuais, embora o real problema é o volume massivo de desinformação e fake news. Além disso, a massa populacional, destinatária das mensagens, não consegue discernir as armadilhas informacionais, no sentido de distinguir se a pessoa do outro lado da tela realmente defende a democracia, o funcionamento regular dos poderes constituídos e as necessidades básicas da coletividade, por isso fica refém de investidas dissimuladas. E há outro elemento que ratifica a liquidez das instituições políticas e jurídicas do Brasil: a criação de um inimigo necessário, real ou imaginário, para justificar atos autoritários ou agressivos de determinado grupo político, assunto tratado na obra O Conceito do Político, de Carl Schmitt, que se refere como inimigo qualquer pessoa ou grupo social que possa, ideologicamente, ameaçar a homogeneidade de um Estado [11]. Segundo o professor Pedro Serrano, é reconhecidamente um método adotado pela extrema direita dos tempos atuais, cuja iniciativa se liquefaz no sistema contemporâneo, superando aquelas convicções tradicionais em face apenas do terrorismo e comunismo e, assim, pulverizando e criando outras opções inimigas, como o índio, o negro, o pobre periférico, as pessoas LGBTQIA+, os jornalistas e líderes políticos ou de movimentos sociais [12]. E um bom exemplo prático do inimigo comum foi dado pelo jornalista Márcio Chaer [13] quando lembrou que foi graças ao ex-presidente Bolsonaro, que se indispôs com o Legislativo e com o STF, levando o Congresso Nacional a legislar intensamente no âmbito de sua função institucional, freando os desmandos do Executivo, da mesma